Felipe de Lara Janz
A maconha (também conhecida por cânhamo, marijuana, ganja, sinsemila, entre outras terminologias) é uma planta pertencente ao gênero Cannabis que, por sua vez, é formado por três espécies principais: a Cannabis sativa, Cannabis indica e Cannabis ruderalis, sendo a primeira de maior incidência. Esta planta vem sendo utilizada pela humanidade há séculos, em diversas práticas religiosas, alimentares, medicinais e na área têxtil. Aos chineses, foram atribuídos os primeiros relatos terapêuticos da Cannabis sativa. É sabido que a chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500, trouxe as primeiras fibras do cânhamo presentes nas velas e nas cordas das embarcações. Acredita-se que a maconha, propriamente dita, tenha sido trazida ao nosso país pelos escravos africanos, daí sua denominação, à época, como “fumo-de-angola”.
A Cannabis sativa é uma das substâncias mais consumidas em todo o mundo juntamente com o álcool e o tabaco. Ela contém centenas de moléculas produzidas pelo seu metabolismo secundário, incluindo, além dos canabinoides, os terpenos e os compostos fenólicos, cada um com propriedades de interesse biológico em potencial. Atualmente, a comunidade científica utiliza o termo “canabinoide” para referir-se a esses derivados naturais da C. sativa, mas também aos compostos sintéticos produzidos em laboratório.
As propriedades farmacológicas destas moléculas dependem da interação com os componentes do sistema endocanabinoide, que compreende os receptores canabinoides e as enzimas de síntese e degradação de endocanabinoides. Os receptores foram nomeados de acordo com sua ordem de descoberta, como receptores CB1 e CB2. Dentro do sistema nervoso central, o CB1 está primariamente localizado nos terminais nervosos pré-sinápticos e é responsável pela maioria dos efeitos neurocomportamentais dos canabinoides. O CB2, ao contrário, é o receptor encontrado majoritariamente no sistema imune, mas que também pode expressar-se nos neurônios. Os principais agonistas endógenos de CB1 e CB2 derivam do ácido araquidônico, sendo a araquidonoil etanolamina o primeiro endocanabinoide a ser caracterizado. Ele foi nomeado de anandamida, do sânscrito ananda, que significa “felicidade”.
O delta-9-tetra-hidrocanabinol (?9-THC ou THC) é o principal componente da Cannabis sativa e o primeiro canabinoide a ser descoberto e estudado por seus efeitos psicoativos. Entre os outros principais fitocanabinoides isolados da planta estão: canabidiol (CBD), canabinol (CBN), canabicromeno (CBC), canabigerol (CBG), canabidivarina (CBDV) e tetra-hidrocanabivarina (THCV).
Dentre as utilizações clínicas do THC descritas na literatura destacam-se: estimulante do apetite e manutenção do peso corporal, principalmente em pacientes com câncer e portadores de HIV; atenuante de náuseas e vômitos decorrentes do tratamento com quimioterapia; controle da pressão intraocular no glaucoma, diminuição de espasmos musculares na síndrome de Tourette, além de atuar como analgésico de dores crônicas. Por outro lado, também são conhecidos efeitos tóxicos ou indesejados desta substância, como: problemas cardiovasculares, alterações imunológicas, ações neurológicas (euforia, ansiedade, sonolência, psicose, alterações psicomotoras, etc) e desenvolvimento de tolerância.
Devido ao seu perfil de segurança e à falta de psicoatividade, o CBD é sem dúvida o canabinoide mais promissor clinicamente, com muitos relatos de ações farmacológicas em vários modelos de patologias, como: doenças inflamatórias, neurodegenerativas e autoimunes, epilepsia, artrite, ansiedade, depressão e câncer. O CBD mostra, notadamente, menor afinidade pelos receptores CB1 e CB2, logo não altera a frequência cardíaca, pressão arterial ou temperatura corporal, não induz catalepsia e não compromete o funcionamento psicomotor ou funções psicológicas como o THC. Além disso, altas doses (até 1.500 mg/dia) deste canabinoide são bem toleradas em animais e humanos, o que lhe confere um perfil de segurança aprimorado.
Figura 1- semelhanças estruturais entre as moléculas do THC e do CBD (Fonte: Green Relief)
O CBD diminui os danos cerebrais associados a condições neurodegenerativas e/ou isquêmicas. Também tem efeitos positivos na atenuação de comportamentos psicóticos, ansiosos e depressivos. Além disso, o CBD atua na plasticidade sináptica e facilita a neurogênese. Os mecanismos desses efeitos ainda não foram totalmente elucidados, mas parecem envolver vários alvos farmacológicos.
Estudos em culturas celulares e em animais mostraram que o CBD protege as células neuronais da ação deletéria do peptídeo beta-amiloide, principal causador da doença de Alzheimer, através de uma combinação de propriedades antioxidantes, antiapoptóticas e anti-inflamatórias.
Igual efeito neuroprotetor, exercido pelo CBD, foi encontrado em modelo animal de doença de Parkinson. A administração diária de CBD (3 mg/kg) atenuou o comprometimento dopaminérgico, promovendo recuperação completa em alguns casos, sem induzir tolerância. Melhorias significativas em medidas de bem-estar de pacientes com Parkinson tratados com CBD (300mg /dia), em comparação ao grupo que recebeu placebo, também foram descritas. Entretanto, estudos envolvendo maior número amostral e com avaliação sistemática de sintomas específicos do Parkinson são necessários para fornecer conclusões mais sólidas sobre o potencial farmacológico do CBD neste caso.
O CBD também exerce efeitos anticonvulsivantes in vitro e in vivo. Experimentos realizados em culturas de neurônios expostos a níveis elevados de glutamato revelaram que o CBD reduziu a toxicidade deste neurotransmissor, sugerindo que ele possui potente propriedade antioxidante. Pesquisas clínicas realizadas até o presente momento indicam segurança e eficácia no uso terapêutico do CBD, podendo ele se tornar o primeiro canabinoide aplicado no tratamento da epilepsia.
Trabalhos científicos demonstraram que o CBD exerce ação antiproliferativa e anti-invasiva em um grande número de tipos de câncer. Este composto é capaz de atingir diferentes etapas do processo tumoral, como: migração, invasão e formação de metástases e, também, estimular a apoptose por autofagia das células malignas. Outros estudos mostraram que os canabinoides apresentam também efeito antiangiogênico pois são capazes de inibir a migração e proliferação de células endoteliais vasculares que formam novos vasos sanguíneos e nutrem o tumor.
Dentre os tipos de neoplasia mais estudados até aqui notou-se que o CBD inibe a proliferação de linhagens celulares de câncer de mama humano induzindo apoptose de maneira dependente da concentração, enquanto apresenta pouco efeito nas células mamárias não-tumorigênicas. Verificou-se que o CBD diminui a invasividade de células de câncer de pulmão humano e possui, efeito antiproliferativo em linhagens celulares de glioma humano, um tipo de câncer cerebral.
Percebe-se que na última década, intensificaram-se as discussões acerca da legalização e descriminalização da maconha, bem como sobre os possíveis efeitos dessa legalização, seja para a saúde pública, para a segurança ou mesmo para a economia do país. Paralelamente, também houve um incremento nos achados científicos que corroboraram o potencial clínico dos cabinoides. Faz-se, mister, romper os preconceitos, superar o atraso científico e aguardar que, brevemente, mais agências controladoras ao redor do mundo, incluindo a ANVISA, façam a revisão do status regulatório da maconha, entre elas do THC e do CDB, proporcionando ensaios clínicos mais amplos que estabeleçam definitivamente a relevância terapêutica dos mesmos.