M.V. MSc. Caio Nogueira Duarte
A Doença Mixomatosa Valvar Mitral (DMVM) é a afecção cardiovascular mais frequentemente diagnosticada em cães de pequeno porte, principalmente os idosos, sendo aproximadamente 1,5 vezes mais comum em machos do que em fêmeas. A prevalência da DMVM aumenta acentuadamente com o avanço da idade e até 85% dos cães podem demonstrar evidências de lesão à necropsia, quando alcançam 13 anos de idade.
A patogenia desta afecção está relacionada a degeneração dos folhetos valvares devido à deposição de proteoglicanas e glicosaminoglicanas na matriz extracelular, além da fragmentação da elastina e desorganização do colágeno do tecido valvar. O termo DMVM deriva portanto da caracterização histológica da lesão, já que há o surgimento de lesões denominadas mixoides que alteram a estrutura de quatro camadas da valva, aumentando a espessura da camada esponjosa e causando a degeneração da camada fibrosa.
A desorganização dos folhetos e o enfraquecimento das cordoalhas tendíneas causa prejuízo da função mecânica do aparato valvar. Devido ao espessamento dos folhetos valvares, que se inicia na extremidade dos mesmos, sua coaptação fica prejudicada, e a sobrecarga de volume atrial induz, com a progressão da doença, a dilatação do anel valvar, agravando a insuficiência valvar. A medida que a doença evolui, há uma redução no débito cardíaco, o que induz a ativação de mecanismos compensatórios como o sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) e sistema nervoso simpático, que atuam aumentando a frequência cardíaca, promovendo vasoconstrição e retenção renal de sódio e água, na tentativa de se restabelecer o débito cardíaco adequado. A curto prazo, a ativação neuroendócrina é benéfica e restabelece o débito cardíaco, porém, a longo prazo, promove sobrecarga de volume e consequentemente, remodelamento de câmaras cardíacas esquerdas, morte de cardiomiócitos e fibrose miocárdica, aumento da pressão no átrio esquerdo, congestão venosa pulmonar e edema pulmonar.
Estudos recentes indicam que a gênese do processo degenerativo relaciona-se ao controle de vias de sinalização que regulam genes essenciais para a homeostase da composição da matriz extracelular. Acredita-se que certas vias de sinalização são dependentes de fatores mecânicos e químicos, e ativadas pelo estímulo mecânico à valva.
Além disso, sabe-se que há forte predisposição racial envolvida no desenvolvimento da DMVM, de modo que cães machos e de pequeno porte são mais comumente acometidos. Suspeita-se de um componente genético com herança poligênica, principalmente em cães das raças Dachshund e Cavalier King Charles Spaniel (CKCS). Foram identificados dois loci associados à doença em CKCS.
A classificação da DMVM mais utilizada atualmente é a do American College of Veterinary Internal Medicine (ACVIM), na qual a doença é dividida em 4 estágios: o estágio A engloba pacientes sem doença cardíaca mas com alto risco de desenvolvê-la, como CKCS; o estágio B envolve pacientes classificados como B1, assintomáticos e que não necessitam de tratamento medicamentoso, ou como B2, ainda assintomáticos mas já apresentando remodelamento de átrio e ventrículo e com indicação de tratamento; o estágio C denota pacientes com manifestações clínicas presentes ou passadas de insuficiência cardíaca associada à doença cardíaca estrutural; e o estágio D engloba os cães que apresentam as mesmas condições do estágio C, mas que já se apresentam refratários à terapia convencional.
O diagnóstico da DMVM é feito por meio do ecocardiograma, no qual é possível observar espessamento e degeneração das cúspides valvares e o fluxo regurgitante da insuficiência valvar, mensurar o tamanho das câmaras cardíacas e se há presença de remodelamento, avaliar índices de função sistólica, diastólica e preditores de insuficiência cardíaca congestiva e auxilia no estadiamento da doença e acompanhamento da sua evolução.
A radiografia de tórax também é um exame complementar importante principalmente para auxiliar no diagnóstico do edema pulmonar, além de fornecer informações a respeito do tamanho das câmaras cardíacas e é uma ferramenta muito útil no diagnóstico diferencial de doenças cardíacas e respiratórias.
O eletrocardiograma é um exame indicado para diagnosticar arritmias cardíacas. As arritmias são observadas nos pacientes com DMVM em estágio mais avançados, como o estágio D e eventualmente no estágio C. As arritmias mais encontradas nestes paciente são as taquiarritmias supraventriculares, como as extrassístoles supraventriculares, fibrilação atrial e taquicardia supra ventricular. As arritmias ventriculares são raras, mas pode-se observar extrassístoles ventriculares isoladas em cães no estágio D.
Além dos exames complementares, uma boa anamnese e exame físico são fundamentais. Os pacientes em estágio B são assintomáticos, já os pacientes em estágio C e D podem apresentar tosse, dispneia, cianose de língua, intolerância ao exercício e síncope. No exame físico o principal achado é o sopro sistólico em foco mitral que varia de intensidade (I a VI) de acordo com gravidade da insuficiência valvar e progressão da doença.
Por seu caráter crônico e progressivo, o manejo terapêutico dessa doença tem sido amplamente estudado nas últimas décadas, sobretudo por meio de diversos estudos clínicos. Não há recomendação de tratamento de cães nos estágios A e B1, enquanto a classe B2 é alvo de muita discussão quanto à melhor conduta a ser instituída. Segundo o consenso do ACVIM de 2019, há indicação de tratamento de pacientes no estágio B2 com pimobendan, visando retardar a evolução para o próximo estágio da doença (estágio C). Em relação ao uso de outros medicamentos como os inibidores da enzima de conversão da angiotensina (iECA) e os antagonistas da aldosterona, não há consenso de uso para o estágio B2.
No que diz respeito ao estágio C, há consenso quanto à utilização de oxigenioterapia, sedação, pimobendan, nitroprussiato em infusão contínua e furosemida, tanto em bolus quanto em infusão contínua, para pacientes C1, que requerem tratamento hospitalar intensivo. Não há concordância quanto à utilização ou não de emplastro de nitroglicerina e iECA nesses pacientes. Cita-se o possível uso de dobutamina e de hidralazina, mas não há consenso quanto à sua recomendação.
Já no estágio C2, no qual os pacientes com insuficiência cardíaca presente ou passada podem ser tratados em casa, há consenso quanto ao uso de furosemida ou torsemida por via oral, iECA, pimobendan e espironolactona. Não havendo consenso para o uso de digoxina, beta-bloqueadores, diltiazem, antitussígenos e broncodilatadores nestes pacientes.
Já o estágio D, representada por pacientes refratários à terapia convencional, quando manejados em ambiente hospitalar podem ser tratados de maneira similar aos animais classificados no estágio C1, com a diferença de que nessa fase, o uso de hidralazina e/ou anlodipino é indicado, com consenso entre os autores.
Cães que se apresentam no estágio D2, constituído por pacientes refratários tratados em casa, indica-se o uso de torsemida, furosemida uma dose diária por aplicação subcutânea, pimobendan, espironoloactona e iECA. Ainda há a recomendação do uso de outros fármacos como os arteriodilatadores (amlodipina ou hidralazina), venodilatadores (dinitrato de isossorbida), digoxina, diuréticos tiazídicos (hidroclortiazida) e sildenafil (em casos de hipertensão pulmonar), para manter estes pacientes estáveis e controlar a congestão, mesmo com baixo grau de evidência científica que sustentem o uso destes medicamentos neste estágio da DMVM.
Felizmente, na maioria dos casos a DMVM é uma doença de evolução lenta e se pode retardar a progressão e manejar suas consequências com o tratamento medicamentoso, o que confere boa sobrevida e qualidade de vida para os pacientes com está doença.